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Halloween à brasileira traz releitura indígena do folclore e novas formas de celebrar

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Com a chegada do fim de outubro, o Brasil se volta para as celebrações do Halloween, uma data de origem estrangeira marcada por fantasias, abóboras e contos de terror. No entanto, enquanto o país absorve narrativas importadas, vozes de povos originários recordam que o sobrenatural sempre fez parte deste território. Para essas comunidades, o que a sociedade majoritária classifica como “lenda” ou “folclore” é, na verdade, a base de sua cosmologia indígena.

Lideranças e pesquisadores argumentam que relatos sobre Saci, Curupira, Iara, Boto e outros seres não pertencem ao campo da imaginação. Eles são descritos como espíritos que ensinam, encantados que protegem e forças vivas da natureza. Ouvimos especialistas para entender por que essas narrativas seguem vivas e por que, para os povos originários, elas são reais.

O Halloween como prática híbrida e o apagamento de saberes

A discussão sobre o Halloween no Brasil levanta questões sobre identidade cultural e a sobreposição de costumes. Para a escritora, geógrafa e pesquisadora Márcia Kambeba, da etnia Magüta/Tikuna, a celebração do Dia das Bruxas no país é uma “prática importada”.

“Esse Halloween que as pessoas comemoram, que se vestem de preto, que se pintam, é uma prática importada, que não é nossa”, afirmou Kambeba. “E quando chega essa data em solo brasileiro, ele se transforma, se mistura com outros símbolos locais”.

Márcia Kambeba, que também é doutora e atuou como assessora de roteiro na série “Cidade Invisível”, explica que, embora o fenômeno possa ser visto como um hibridismo cultural, ele também reflete “processos de apagamento das espiritualidades indígenas”.

Segundo a pesquisadora, o Halloween reforça um “imaginário sobrenatural eurocêntrico”, focado em bruxas, vampiros e fantasmas. Esse imaginário, em sua visão, acaba “ignorando ou esvaziando” as narrativas das cosmologias locais, como “os encantados, o espírito da floresta, a Matinta Pereira, o Curupira, o Boto, a Iara, o Mapinguari”.

 

O Curupira é uma das entidades mais antigas do folclore brasileiro, conhecido como o guardião das florestas. Imagem: Ilustração

Ressignificação: A Oportunidade de Afirmar a Cosmologia Indígena

Márcia Kambeba aponta que o sistema educacional frequentemente colabora para o silenciamento dos povos originários ao tratar suas narrativas como “mitos ou lendas”. No entanto, ela acredita que a própria interação cultural provocada pelo Halloween pode ser usada como uma ferramenta de reafirmação.

“Ao interagir com o Halloween, nós podemos retomar e afirmar as nossas próprias narrativas sobrenaturais”, propõe. “Falar da Matinta não como essa bruxa que é pintada, mas como uma encantada, como uma mulher que cuida da floresta”.

 

Matinta Pereira – Descrita como uma mulher idosa que se transforma em pássaro durante a noite, ela percorre os céus emitindo um assobio agudo e inconfundível. Imagem: Ilustração

Na língua Magüta/Tikuna, esse movimento é chamado de Ikua imitsara kana, que significa “Caminho da sabedoria ancestral”.

Para ilustrar como a cosmologia indígena é parte integrante da vida real, Kambeba compartilha uma história pessoal que será tema de seu próximo livro, “Amazônia na Proa da Canoa”.

“Meu avô dizia ele era filho de Boto e que conheceu o mundo das águas porque foi levado pelo pai dele, que era um encantado das águas”, relata. “Então, cabe aos próprios indígenas reescrever nossas narrativas, mostrando que não são folclore, lendas ou mitos, mas elementos centrais de sua cosmovisão como povo originário”.

Símbolo do imaginário amazônico, o Boto Encantado é conhecido por sua transformação em homem nas noites de festa.

“O sagrado não é entretenimento”: a visão Pataxó Hã Hã Hãe

A percepção de que o sagrado não deve ser tratado como entretenimento é um ponto central para diversas lideranças. Jaqueline Haywã, cacica do povo Pataxó Hã Hã Hãe, escritora, professora e integrante do Conselho da Igualdade Racial de Ribeirão Pires (SP), traça uma distinção clara entre as duas visões de mundo.

“Para nós, povos indígenas, o sobrenatural não é um tema de festa, e sim uma dimensão da existência”, explica Haywã, da etnia Kariri Sapuyá. “Os espíritos, os encantados e as forças da natureza estão presentes no cotidiano, orientando nossas ações e nossos cuidados com o mundo”.

Atuando como professora em escolas não indígenas, Jaqueline relata a dificuldade em transmitir a cultura de seu povo, justamente porque os termos “lenda” e “folclore” são usados para designar o que é considerado imaginário.

“O que chamam de ‘mito’ são, para nós, formas de conhecimento e de verdade”, defende. “Essas narrativas expressam a maneira como entendemos o mundo, a natureza e o sagrado. Elas orientam nosso modo de viver”. Para a cacica, quando o não indígena reduz essas histórias a “fantasias”, ele “apaga a legitimidade de um saber ancestral”.

Essa visão é traduzida em sua obra “Poemas para Existir”, onde escreve: “Não é fantasia. Esse estereótipo é crueldade. Cada pena representa FORÇA e RESPONSABILIDADE. Um parente que partiu para lutar na eternidade”.

Para as lideranças ouvidas, o debate provocado pelo “Halloween à brasileira” é, portanto, sobre memória, território e resistência. Elas defendem que, para os povos que há séculos habitam estas terras, o mistério não é ficção, é “presença”. A discussão propõe um reaprendizado, um convite para enxergar o invisível que, segundo elas, a colonização tentou apagar, respeitando os saberes tradicionais.

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