Pesquisa inovadora entre CNPEM e Inpa mapeia micro-organismos inéditos no intestino do mamífero, abrindo caminhos para um biocombustível mais eficiente e sustentável.
A resposta para um dos maiores desafios da transição energética global pode estar submersa nas águas turvas dos rios da Amazônia. Uma colaboração científica de alto nível descobriu que o etanol de segunda geração pode ser produzido com muito mais eficiência graças ao sistema digestivo de um gigante gentil: o peixe-boi-da-Amazônia (Trichechus inunguis). Pesquisadores identificaram que enzimas presentes nas fezes deste herbívoro possuem uma capacidade extraordinária de “desmontar” moléculas vegetais complexas, facilitando a transformação de resíduos agrícolas em energia limpa.
Esta descoberta é o resultado de uma parceria estratégica entre o Centro Nacional de Pesquisa em Energia e Materiais (CNPEM), sediado em Campinas (SP), e o Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa). Unindo a biodiversidade da floresta à tecnologia de ponta do superlaboratório Sirius, os cientistas realizaram um mapeamento genético inédito dos micro-organismos que habitam o intestino do animal. O objetivo é claro: superar os gargalos tecnológicos que ainda encarecem o etanol de segunda geração.
Uma biofábrica natural nas águas amazônicas
Para compreender como transformar plantas em energia de forma viável, a ciência precisou olhar para a natureza. O peixe-boi amazônico é o maior herbívoro de água doce da região, podendo atingir até 420 quilos e consumir cerca de 40 quilos de plantas diariamente. Essa dieta volumosa exige um sistema digestivo extremamente potente. Segundo Vera da Silva, pesquisadora do Inpa, essas características convertem o animal em uma verdadeira “máquina trituradora de biomassa verde”.
A lógica da pesquisa é fascinante: para extrair nutrientes de uma quantidade tão grande de celulose, o peixe-boi depende de um consórcio de bactérias altamente especializadas em seu intestino. Gabriela Felix Persinoti, pesquisadora do CNPEM, detalha que foi justamente ao investigar essas bactérias que a equipe encontrou enzimas desconhecidas pela ciência, com potencial industrial para acelerar a produção do etanol de segunda geração.

A coleta do material biológico ocorreu no Laboratório de Mamíferos Aquáticos do Inpa, em Manaus, respeitando rigorosos protocolos éticos. O local abriga animais resgatados da caça ilegal e em processo de reabilitação. O procedimento foi totalmente não invasivo: os pesquisadores coletavam as amostras de fezes na água ou quando os tanques eram esvaziados para limpeza, garantindo que o bem-estar dos animais fosse preservado e que eles não fossem expostos ao estresse ou ao sol forte.
A ciência do invisível: Metagenômica e o Sirius
Após a coleta na Amazônia, as amostras foram enviadas para Campinas, onde a pesquisa entrou em uma fase de alta complexidade tecnológica. O CNPEM utilizou o Sirius, o maior e mais complexo acelerador de partículas síncrotron da América Latina. Este equipamento gigantesco funciona como um “supermicroscópio” que usa luz de altíssimo brilho para revelar a estrutura atômica dos materiais.
Com o Sirius, os cientistas não apenas identificaram os micro-organismos, mas conseguiram mapear a estrutura molecular das enzimas com um nível de detalhe sem precedentes. Isso é fundamental para a indústria do etanol de segunda geração. Entender a forma exata da enzima permite aos cientistas modificá-la racionalmente, tornando-a mais rápida, estável e resistente às duras condições industriais, como altas temperaturas e acidez.

Outro ponto de destaque é o método utilizado, a metagenômica. Essa técnica permitiu sequenciar todo o material genético presente nas amostras de uma só vez, sem a necessidade de cultivar cada bactéria individualmente em placas de Petri, o que seria impossível para muitas espécies selvagens. O resultado foi surpreendente: cerca de 50% das bactérias e 80% dos vírus encontrados no intestino do peixe-boi eram totalmente desconhecidos e não constavam em nenhum banco de dados global.
Do laboratório para a indústria: Aplicação prática
Uma dúvida comum é se a produção desse biocombustível dependeria sempre dos animais. A resposta da ciência é um alívio para a conservação: não. Com o mapeamento genético concluído, não é mais preciso coletar novas amostras ou incomodar os peixes-bois.
Os pesquisadores utilizam técnicas de engenharia genética para inserir o DNA dessas “superenzimas” em bactérias de laboratório comuns, que passam a funcionar como pequenas fábricas, produzindo as enzimas em larga escala industrial.
Além de impulsionar o etanol de segunda geração, as descobertas abrem um leque de possibilidades para a biotecnologia nacional. As enzimas identificadas demonstraram potencial para serem usadas na indústria de alimentos, na produção de produtos sem lactose, e na indústria farmacêutica, auxiliando no desenvolvimento de novos antibióticos para combater bactérias resistentes.

O Etanol de Segunda Geração e o sonho do Resíduo Zero
Mas por que tanto esforço pelo etanol de segunda geração (E2G)? Diferente do etanol de primeira geração, feito do caldo da cana-de-açúcar (o açúcar simples), o E2G é produzido a partir dos resíduos que sobram no campo e na usina, como o bagaço e a palha.
Esses materiais são ricos em energia, mas suas moléculas são difíceis de quebrar “recalcitrantes”, na linguagem técnica. É aí que entram as enzimas do peixe-boi: elas atuam como chaves mestras que destravam essa energia contida nas fibras vegetais.

O objetivo final do CNPEM é viabilizar as chamadas “biorrefinarias de resíduo zero”. Neste modelo de economia circular, a usina aproveita integralmente a cana. O caldo vira etanol 1G ou açúcar; o bagaço é processado com os coquetéis enzimáticos para virar etanol 2G; e a lignina (outro resíduo) pode gerar eletricidade ou outros produtos químicos. Isso reduz drasticamente a pegada de carbono e torna o biocombustível brasileiro ainda mais competitivo no mercado internacional.
A conservação como motor da inovação
A pesquisa traz uma mensagem poderosa sobre a bioeconomia: a floresta em pé vale muito mais do que derrubada. O peixe-boi-da-Amazônia é uma espécie endêmica e infelizmente ameaçada de extinção, vítima histórica da caça ilegal e da degradação de habitat.
A Lei de Crimes Ambientais pune severamente a caça, perseguição ou uso da fauna silvestre, mas a prática ainda persiste em regiões isoladas. Vera da Silva alerta que a recuperação populacional da espécie é lenta e que sua fragilidade é um risco para todo o ecossistema, já que o animal atua como um “jardineiro das águas”, controlando plantas aquáticas e reciclando nutrientes.
Este estudo prova que a biodiversidade amazônica é uma biblioteca de soluções tecnológicas ainda não lidas. Ao proteger o peixe-boi, não estamos apenas salvando uma espécie carismática, mas garantindo o acesso a conhecimentos que podem ser decisivos para o futuro da humanidade, como a produção eficiente de etanol de segunda geração e novos medicamentos. Com a aproximação da COP30, que será realizada no Brasil, exemplos como este reforçam o papel do país como líder em tecnologia sustentável baseada na natureza.
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